A CARA DAS ALMAS


A água caía do chuveiro fria e ininterrupta, e quando tocava o alto de sua cabeça, contornava seu rosto pálido, inundava suas pálpebras fechadas, contornava seu pescoço em sinuosos rastros que lambiam os seus seios e depois despejavam-se em seu corpo, que era agora, uma esplêndida catarata de lágrimas e litros de água de caixa d'água. Elas caíam em velocidade constante, mas ainda assim cumpriam bem sua função de limpar a quem chamarei aqui de minha personagem-protegida.

"A dádiva mais hedionda que há é quando se sabe quando e como será o encontro com a morte. No ponto final da vida." - esse raio de verdade me atingiu enquanto eu estava sentado encostado à janela de um ônibus que sacolejava inconveniente, mas minha inércia era tamanha, que eu mantinha minha cabeça ali, naquele terremoto cujo epicentro era o vidro e a minha cabeça e minha ridícula massa encefálica.

Ela não conseguia chorar e tomar banho, ao mesmo tempo. A água do chuveiro anestesiava suas glândulas lacrimais, como um feitiço de causa misteriosa. Ela queria chorar, mas precisava se lavar, pois jamais se sentira tão suja em toda a sua vida. Nem mesmo quando levou um tombo dentro do chiqueiro da fazenda de seus finados avós.

A minha sensibilidade maldita e desnecessária de ver sem ser visto, de arrancar confissões de olhares, e de extrair palavras do vácuo do silêncio foi lapidando minhas vistas até eu ser capaz de ter a terrível habilidade de enxergar a cara das almas, como elas eram...

Passados mais de 20 minutos de banho, o vapor começou a sussurrar em seus ouvidos, lhe fazendo uma denúncia cruel: não é com água que você vai se limpar. Não disso. E desesperada, ela esfregava violentamente a esponja vegetal sobre todas as suas curvas, articulações e maciezas, até ela se avermelhar de irritação. E por dentro, seu corpo também estava vermelho, mas de medo.

Eu não deveria contar-lhes isso, mas contarei mesmo assim, porque segredos que não são compartilhados tornam-se cadáveres dentro de nós. Quanto mais guardamos, mais eles vão fedendo, até criarem vermes que vão nos lambendo os neurônios, até os expurgarmos. Há quem chame de fofoca. Eu prefiro chamar de alívio, ou exumação. Tudo depende de para quem se conta os vermes.

Minha protegida experimentou um pouco do gosto de morte em sua boca quando percebeu que o que ela sentia não tinha nome. Ela havia crescido num mundo onde tudo era nomeável e todas as coisas do mundo estavam dentro de um dicionário, ao qual ela sempre recorria quando desconhecia o nome de algo. Domada pelo desespero, ela saiu correndo do chuveiro, sem desligá-lo, abriu a porta e foi correndo à sua estante atrás de seu dicionário, e faminta pela verdade, pela definição, ela folheava as páginas, à procura do nome daquilo que ela sentia.

Há algumas almas que têm cara de papel amassado, outras de algodão doce, outras são apenas estilhaços flutuantes. Há as que se parecem com vinil derretido, outras que parecem alumínio líquido, e outras que parecem com os olhos vermelhos de um coelho nascido de uma cartola de um mágico charlatão. Algumas são mais inflexíveis que outras, mas para si mesmas, todas as almas são moles.

Uma guerra era travada nas fronteiras de suas vísceras, e sua visão começou a escurecer. A mistura de medo com o sentimento inominável provoca náuseas, além de doses cavalares de desespero, fazendo-a cair nua, trêmula e molhada sobre sua cama. Não são todos que resistem acordados à realidade. Acordou 10 horas depois, ainda trêmula, mas apenas por causa do frio. O medo, cão covarde, já havia se dissipado e vazou pelo ralo de seu inconsciente, - seu melhor amigo -, que a livrou de um surto de psicose.Vestiu-se. Pegou as chaves e foi arejar sua alma, acertar suas contas com o mundo.

Leia devagar para entender: morrer também é viver, só que do outro lado do ponto final. E do outro lado do ponto final vive-se sem ninguém jamais saber quantas gramas contém a dignidade de viver estando morto para quem ainda está vivo. A própria ausência de quem está morto para quem está vivo é a prova de que há, sim, vida após o ponto final: as reticências. Não se vive milênios, mas se morre infinitamente. Inclusive já em vida nós treinamos a morte quando deixamos de viver, perdendo tanto tempo rezando "que seja feita a vossa vontade" para os humanos, perdendo tempo sonhando acordado, ou subornando nossos desejos por aprovações alheias, que só nos acomodam, estabelecendo vínculos sociais que o substituem e o desprezam quando sua matéria não lhes for mais útil. E então, você sucumbe, ainda em vida.

Ela soube que ia morrer por recado de seu instinto. Ela agradecia por ter tido essa sorte ou privilégio em saber que morreria naquele dia. Graças a Deus ela morreria consciente de tal, que o fim compareceria àquele encontro, e que ela não teria que ficar décadas definhando à espera daquele momento inevitável do qual ninguém, por mais branco que seja, não é capaz de escapar ou subornar. Com uma sensação de saciedade jamais sentida em toda a sua vida, e já sem sentir a obrigação de ser percebida como normal, ela saiu dançando e gritando palavras aleatórias e desconhecidas até por ela mesma. E ria, como uma criança sadia.

O ônibus freou repentinamente e eu voei um pouquinho, até bater minha testa no banco da frente. Era ali o ponto final? Sim, mas não o meu e sim dela, aquela "desavisada", como chamou o motorista, quando todos já estavam fora do ônibus. Eu nem sequer tive o luxo de desmaiar, ou muito menos de me chocar com aquela cena ou de entrar em estado de choque, e acabei rindo daquele insulto absurdo. Ele jamais poderia imaginar que ela estava sim avisada de que morreria naquele dia. O desavisado era ele que não foi homem o suficiente para também morrer ali.

E então, minha personagem-protegida teve a dignidade e sorte de morrer para sempre.



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