A LINHA



Descobri hoje quais são as linhas que tecem uma vida - é metade momento e metade constatação: vive-se e então constata-se que a alegria que era constante na infância foi guardada em um balde furado, e hoje só respinga.

Outra constatação: escrevemos e depois constatamos que não há legitimidade no autor que não põe um pouco de si dentro de suas personagens e histórias mirabolantes, e que nem se escrevêssemos o texto mais belo ele seria entendível, se uma palavra fosse escrita sobre a outra e que certamente ele sucumbiria ao ridículo de ser um mero rabisco.

É realmente difícil alinhar sonhos, devaneios, desejos e histórias sem estar alinhado consigo próprio, mas me torno um rabisco, se pelo menos não tentar alinhar, ainda que de forma tortuosa, aquilo que nasce da minha mais infame loucura. Mas o que me alimenta não são sonhos ou pretensões, mas sim a Linha. Percebo então que só tenho duas alternativas: vegetar ou escrever.

Agora eu me sinto estranhamente mais íntimo das palavras do que das pessoas que estão a minha volta. Substituiria facilmente um diálogo cotidiano com pessoas por uma pequena conversa com sílabas, ou um almoço de negócios por um chá ou suco de vidro com aquilo que me inspira, que não sei se é que ou quem.

Mas nem mesmo essa minha devota e incondicional paixão pelas linhas está livre de decepções, porque o grande Desalinho condena-me à dor da sapiência: a dor de minhas personagens me machuca, porque também são ou já foram minhas, e essas personagens que vivem à margem da inexistência e da pequeneza não deixam de ser parte de mim e isso é terrivelmente pesaroso.

E breve como a morte súbita de quem goza em um segundo e no outro já não pertence mais ao mundo, eu recebo, como uma brisa fria e rara em um dia de verão, uma última constatação: as palavras não fazem milagres.

(mas eu ainda as santifico.)