UMA CONVERSA COM O CORAÇÃO



- Alô. Eu gostaria de saber porquê tu ainda me fazes ser vulnerável a páginas passadas deste livro que sou.
- O que te torna vulnerável é a ausência de um botão reset, que lhe faz falta, realmente. Reclame com o seu autor.
- Mas é você quem acelera e me faz perder o ar quando o vento sopra e as páginas passadas se reviram e voltam ao meu campo de visão.
- Eu sou involuntário: sou apenas a oferenda, e não o próprio ritual.
- O que você quer dizer com isso?
- Que eu só me entrego àquilo ou a quem você permite. Que eu só acelero quando você se permite que as lembranças voltem a liberar adrenalina em seu sangue, e então, eu perco o equilíbrio e trepido, mas não posso deter a mim mesmo, pois se o fizesse estaria infringindo a lei básica que a criação me impôs: a de ser involuntário e não conseguir controlar meus próprios impulsos.
- Eu queria saber porque o passado às vezes insiste tanto em vazar sobre o meu presente.
- E você acha que os fatos se conformam em virar passados e serem engolidos pela inexistência e pelo seu esquecimento?
- Mas eu sou apenas personagem, não tenho direito de escrever minha própria história. Isto é vedado ao meu autor...
- Quem disse? Eu conheço muitas personagens que conseguiram se libertar de seus próprios autores.
- Mas como elas fizeram isso?
- Com o decorrer de suas próprias histórias, elas foram aprendendo a fabricar um fim para cada momento que viveram. Elas aprenderam fazer do fim uma mesa de parto e sobre ele parirem sua própria luz. Elas tinham asas pesadas, e só o voo lhes aliava desse peso, e então, voavam.
- Eu queria tanto aprender a ser assim...
- A necessidade lhe será  uma exímia professora.


E após a derradeira frase dita pelo coração, a ligação caiu - infarto.

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