FALSO COGNATO



Enquanto eu ardia em febre e me retorcia na cama, Ângelo nasceu - já morto - dentro do meu mais psicodélico sonho. Ele não tinha rosto e também não tinha mais certezas. Aliás: a única certeza que ainda lhe restara era a de que, na verdade, ele não possuía mais nenhuma certeza dentro do seu bolso íntimo. 

Ele sofria por isso, pois essa ausência do concreto em sua vida e em sua percepção sobre o seu entorno lhe desfigurava. E ele cresceu sendo estimulado a viver procurando certezas às quais ele pudesse se escorar e a pensar que ele precisava de eternos "sims" ou "nãos" para poder sobreviver com o máximo de racionalidade possível.

As colunas do óbvio costumavam lhe ser confortáveis e embasavam bem suas futilidades e as futilidades de quem estava ao seu entorno. Ele jamais soube disso, mas toda vez que encontrava alguma certeza imbecil, ele perdia um neurônio, um dia, uma lágrima, um órgão a menos em suas vísceras, pois a certeza após limitar, mata.

Particularmente, eu admito que tenho um discreto fascínio sobre as incertezas. Pois elas não são o oposto das certezas, mas são certezas fracas, ainda líquidas, que não se deixaram congelar por nenhuma linearidade, e nem se solidificaram a ponto de se tornarem certezas cretinas, estúpidas, que não se permitiram ser limitadas pela eternidade, e que dão a si próprias a oportunidade divina, a legítima dádiva de estar errada, ao menos uma vez em toda a história.

Então eu me enfureci: aos gritos, eu espanquei Ângelo até que ele então desfaleceu. E quando ele acordou, eu o condenei. A sentença era que ele fosse caçar e confiscar todas as certezas existentes no mundo: desde as que estavam presas nos livros escolares às que estavam ainda sendo fabricadas dentro de igrejas ou centros científicos espalhados por aí.

Quando ele voltou e jogou todas as certezas que havia encontrado perante a mim, eu percebi que elas eram escassas e mais frágeis do que realmente aparentam ser. E então aquela pequenez de certezas à minha frente me fez sentir-me grande, até que a vontade de destruí-las tornou-se incontível e então, desesperadamente, eu tentei quebrá-las, extingui-las e derretê-las em brasa, mas após um certo tempo, percebi que elas eram inquebráveis e indestrutíveis em sua essência, e era exatamente isso o que as tornavam certezas. Minha inexatidão desabou diante de toda aquela exatidão maldita.

O choque de confrontar certezas - a maioria delas bem mais velhas que eu - foi tão duro quanto pular em uma piscina vazia, ou saltar de uma sacada rumo à vastidão sólida e irredutível da superfície. Desesperado, chamei Ângelo e ordenei-lhe que agora fosse buscar e apreender todas as incertezas. Ele demorou alguns anos para voltar, e essa demora me fez ter uma irônica incerteza sobre sua volta. Eu já estava velho e cansado, ausente de qualquer esperança, até que finalmente a porta se abriu e ele começou a depositar as incertezas todas na entrada de minha casa. sse

Ah, como eram belas todas aquelas incertezas. Ainda que houvesse algumas incertezas obscuras, ainda sim, eram fabulosas. Como eram muito numerosas, a maior parte delas, não coube dentro de minha casa. Mas estabeleci que, a partir daquele dia, ali seria o refúgio mundial para todas elas. Algumas chegavam a espumar, de tanta inconstância. E assim como uma criança ao ir à praia pela primeira vez, eu me esbaldei naquelas incertezas líquidas, e mergulhava imprecisamente em meio àquelas ondas desestabilizadas. 

Perguntava-me o porquê de uma alma ter tanta devoção por paradigmas tão rejeitados pela maioria. Fui descobrir isto depois que a febre passou, e a resposta foi como a água que preencheu toda a minha piscina: afogar-se no incerto alivia o peso da razão e sanidade.

Um comentário:

  1. As certezas aprisionam; as incertezas são portas entreabertas!
    Bj, adorei o texto (isso já é rotina, né????)

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