BUENOS AIRES


Parte I

14:19
15/09/1973
Praça Buenos Aires - SP

Aconteceu ali. Num sábado em que a primavera se espreguiçava sobre São Paulo enquanto a alta sociedade entrava, circulava e saía dali com seus poucos filhos. A maioria, brancos e judeus. Ah, como eram lindas todas aquelas familiazinhas fofas rodeadas por ipês amarelos e jequitibás rosas. Aquela praça que hoje é parque era - e suspeito que ainda é - a maternidade da vida e de toda a alegria de São Paulo.

Quem queria ficar feliz, ou quem queria ser feliz, precisava tirar ao menos uma hora de seu fim de semana ali naquele oásis. Ali o bem-estar se fazia tangível e os pique-niques eram cerimônias celebradas com a dança das esculturas sobre aquele salão de natureza. E foi nesse ambiente que Luiz Carlos, executivo, casado e branco, criou suas duas meninas que de tão brancas, eram celestiais: Amanda e Sabrina eram os seus anjinhos.

Quem era crescido e reparava nas duas sentia inveja daqueles seres que eram tão pequenos e puros, mas já haviam nascido ricos e socialmente favorecidos. Naquele dia, assim como todos os dias em que tragédias acontecem, algo não está igual aos dias normais: faltava algo. Faltava alguém. Faltava a mãe delas ali, que estava, coincidentemente, em Buenos Aires que não era praça, nem parque, e sim, capital da Argentina. Ela usava a cidade como quintal após qualquer briga ou discussão que tinha com Luiz.

E ela nunca se arrependeu tanto por ter viajado após aquela briga na quinta-feira. E Luiz jamais pensou que ir comprar sorvetes seria o maior erro que ele cometeria em toda a sua vida.

- Boa tarde. Me vê três picolés de morango, por favor?
- É pra já, senhor.

E enquanto isso a tragédia acontecia: Amanda estava contando até 20 enquanto sua irmã se escondia. E ao contrário das outras vezes em que brincavam de esconde-esconde, ela não espiara por debaixo da axila para ver aonde sua irmã tinha ido. E após terminar a contagem, começou sua busca que durou exatamente 30 anos. 

Sabrina foi raptada.

Quando seu pai chegou com os picolés, ele perguntou de Sabrina e Amanda disse que também não sabia. Um refluxo de desespero o subiu até o esôfago, mas ele se controlou e ordenou a filha que fosse procurá-la em direção ao norte do parque, enquanto ele procurava mais minuciosamente por ali...

E nada. 
Chamaram a polícia.
E nada.

Ambos se permitiram cair em desespero e debulharam-se lágrimas de inconformação e desespero. Luiz, como era influente e abastado, utilizou de todos os seus meios e recursos financeiros para tentar localizar sua filha. Não adiantou. Ainda no mesmo dia, ligou para sua esposa que não o atendeu por ainda estar magoada com ele. A dona só retornou ao Brasil na terça-feira, três dias após o grande rapto. Desmaiou quando soube. E era depressiva até alguns dias atrás, quando faleceu sem saber como tinha sido o destino tão cruel de Sabrina.


Parte II



17:05
11/11/2003
Praça Buenos Aires - SP

O único voo diário Amsterdã-São Paulo aterrizou em Guarulhos. Sobre saltos altos e protegida por seus óculos escuros Gucci, Sabrina desce do avião, faz seu check out e chama um táxi.

- Avenida Angélica, por favor.

Durante aquele trajeto de quase 31 quilômetros, foi inevitável segurar as lágrimas. Sabrina não sabia se sua família ainda morava naquele mesmo prédio, se estavam todos vivos, o que e como contaria tudo a eles. Ela tinha apenas 12 anos quando tudo aconteceu. Mas três décadas inteiras se passaram depois daquela interrupção súbita de laços que a vida lhe reservou.

- Agora você pode virar na próxima à direita.

Ela ainda lembrava perfeitamente. Rua Bahia, 134. Apartamento 122.

Ninguém atendeu ao interfone.

Ela não insistiu, e instintivamente, decidiu revisitar a praça onde tudo aconteceu, e não sabia que lá havia virado um parque. Resolveu entrar pela entrada principal, deparando-se com a escultura de Anfitrite e Tritão pairando petrificados e melancólicos ao observar o espelho d'água que refletia o céu azul e nobre que reveste o bairro de Higienópolis em todos os verões.

Ela arrepiou-se quando sentou-se num banco logo em frente de onde havia conhecido aquele homem que a dera um novo destino. Um alemão de meia-idade que a sequestrara, de tão encantado que ficou com a brancura e candura de Sabrina. Providenciou todo o trâmite para que ele conseguisse burlar as autoridades a fim de levá-la para morar consigo. 

Ele fez todas as piores coisas que você possa imaginar. Atos tão cruéis, insanos e insensíveis que meus olhos se fecharam diante de todas aquelas cenas que me enfrentaram. Até que ela, ao chegar aos 18 anos, e cansada daquela escravidão sexual infinita e insaciável, esfaqueou-o desferindo um golpe um pouco abaixo do umbigo de Antonin e levando com rispidez a faca até a sua virilha, rasgando-o, como um espantalho inútil. 

Logo depois, ela foi atraída por propostas do submundo. Holanda era o seu destino e sua beleza lhe serviria como seu emprego, e não demorou a acostumar-se com aquela nova vida de escrava sexual, só que paga. Ela já estava acostumada a ter sua intimidade invadida. Ela era apenas um buraco.

Mas envelheceu e quando não prestava mais para aquilo, viu-se semi-morta - ou semi-viva -, tanto faz. E afundou-se ainda mais em uma areia movediça e viciante. Cocaína.

Tudo acabou quando ela acordou após ter passado três dias dormindo, por conta do uso excessivo de drogas, e então viu que a única solução era voltar para o Brasil em busca de sua inocência perdida. É claro que, desde a morte de Antonin, ela teve diversas chances de voltar ao Brasil, mas santa ela nunca tinha sido, e uma vez perdida, resolveu perder-se ainda mais. Nunca foi de muitos afetos, mas só sentia saudades das brigas com Amanda e dos passeios com ela e seu pai.

A única vez que sorriu durante esses trinta anos foi quando lembrou-se de que ela tinha inveja da irmã, por ela ser a primeira da chamada, em sua classe, e ficava chateada por seu nome começar com S. E frequentemente ia perturbar seus pais com a mesma pergunta: "por quê meu nome também não começa com A?"

E sentada ali, sozinha. Rica, mas sozinha, infeliz e corroída por dentro, sentiu pela primeira vez a dor da ausência de sua família e de notícias dela. Já passavam de vinte lágrimas quando ela tornou a lembrar-se da tal pergunta que sempre fazia aos seus pais e riu pela segunda vez, enquanto enxugava as próprias lágrimas. 

E quando terminou de secar-se, viu uma família linda, com um senhor já em uma cadeira de rodas, ao lado de uma mulher de meia-idade, com seu marido e um casal de filhos. Era a primeira da lista de chamada. Amanda.

E Sabrina, atônita, sentiu inveja da irmã pela segunda vez. Mas agora, não por ela ter sido o primeiro nome da chamada, mas por não ter sido ela a raptada. Não se conteve e gritou. De felicidade e de raiva, inconformação. Era uma alma subterrânea que via ali a luz pela primeira vez e não aguentou a intensidade. Gritou estridente. 

No mesmo instante, Amanda olhou para aquela madame louca que estava a uns metros a sua frente, certa de que a conhecia de algum lugar...


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