FOTOFOBIA


Fumante.
Diabética.
E depressiva. 
Muito depressiva.

Trabalha de auxiliar administrativa, ganha mal pra caramba e é toda complexada. Consigo. Com as pessoas a sua volta. Com a vida. Era daquelas mulheres anônimas que têm 40, mas já aparentam ter 60 anos. Ora agressiva, ora a manteiga derretida, Sandra vivia em estado de decomposição existencial.

Certo dia, um dos funcionários do escritório enviou-lhe um buquê de flores baratas, com a intenção de dá-la uma esmola de alegria, mas ficou chocado com a reação da colega de trabalho: ao ler o seu nome no cartão que estava dentro daquele arranjo, ela o rasgou, pegou as flores com as mãos, as entortou e as jogou no lixo com vigor em sua raiva. Aquilo espantou a todos do seu setor, mas ali ela só reproduziu o que fazia consigo mesmo todos os dias. Ela também se jogava no lixo sendo aquela merda de ser humano que era todos os dias.

Ser cinza e ranzinza daquele jeito fazia sua pele exalar repulsa junto com o seu suor, e todas as pessoas que tinham convivência próxima a ela, eram distantes, em se tratando de intimidade. Muito distantes, eu repito. Seu único amigo era um maço de cigarro que ela carregava consigo somente até o dia seguinte, quando ele acabava e ela tinha que comprar outro. Ela se matava um pouquinho todos os dias e se sentia aliviada por isso. 

O apartamento em que morava só tinha dois cômodos e um banheiro minúsculo. As roupas limpas e escassas se misturavam com as roupas sujas que eram abundantes e era impossível determinar onde começava a cozinha e terminava o seu quarto, já que a bagunça interligava tudo e fazia aquele cubículo parecer um labirinto, um reduto de uma alma que abandonou o seu próprio ser, entregando-o aos desígnios da vida, assim como uma mãe desnaturada abandona seu filho na porta de alguma dona de casa infértil e generosa.

Sandra era uma pedestre cansada de esperar um farol que nunca se abria para ela passar. Falando em passar, "Vai passar" - era o que ela sempre ouvia quando raramente desabafava com um colega que vinha lhe perguntar sobre sua vida, e então fingia acreditar naquilo que ouvia, mas sabia muito bem que nada ia passar porcaria nenhuma, porque não havia fases ruins... Era tudo ruim em sua vida. Ela era a ruim, e a cada dia que passava ela era menos viva. Sua vida poderia ser medida através do quanto nós transpiramos e, por esse parâmetro, ela vegetava, pois só transpirava quando se masturbava ou quando corria atrás de um ônibus.

Pausa.

Toda essa vida flutuante me lembrou a heroína de "A hora da estrela" - Macabéa. Mas ao contrário da personagem filha das inspirações de Clarice Lispector, Sandra não vivia vendada por uma ignorância pura, que a proibia de perceber que era medíocre. Ela vivia num mundo que pertencia somente a ela, mas era pior e indigna, pois ela cometeu o pior erro depois de nascer: o saber. Ela sabia. Ela terrivelmente sabia. Ela sabia das coisas e por isso pecava... Sua mente só prestava para lhe apontar suas obscuridades e toda a semi-vida que levava.

Deitada em sua cama que fedia a suor e creme de cabelo, ela fitava o ventilador de teto girar implacavelmente e naquele momento percebeu o quão vazia era. Olhando-a de cima, ela se parecia com um cinzeiro: era um depósito de cinzas, onde vários momentos longínquos que eram amargos (separações?), azedos (relações?), doces (paixões?) haviam sido apagados e descansavam em paz, mas lhe traziam tormento: antes de tornarem-se cinzas, elas eram cigarros, que apesar de trazerem calma e prazer quando tragados, queimavam-lhe a ponta de seus dedos e asfixiavam seus alvéolos - sentimentos e lembranças asfixiam, se você não sabe.

Sua alma era planta carnívora que só se alimentava de moscas. Mas então, num dado instante, ela cansou de vida de merda que levava, das 8 horas diárias no escritório em que trampava, dos oitocentos reais que recebia... Cansou de brincar de tomar pequenas doses de morte e então tomou uma decisão.

Seu último suspiro foi de cansaço por ser sempre uma querendo mais um para então não ser um casal, mas transfigurarem-se em outro ser, composto por dois corpos mas com uma só mente e sexo e alma. E então ela atirou em si própria, na região superior do peito esquerdo. Ela não sentiu dor. E o fez no escuro, pois tinha aversão à luz. Gostava mesmo era de viver sua vida sintética protegida e amparada pelas sombras, e então resolveu sob elas também morrer.

E então, aquilo foi como se ela jamais tivesse falado em sua vida... Como se vivesse em total silêncio desde seu nascimento até àquele momento e então repentinamente, descobriu que sabia gritar e o fez em tom estridente, mas não para o mundo, mas somente para si. Ela teve a delicadeza de berrar somente para si. E então a morte lhe atendeu, generosa.

Eu também estava ali, só que do outro lado do neurônio em que ela habitava, fora daquela síntaxe maldita que a havia criado e depois matado. Ela estava cansada de ser sem parar e ficou curiosa em deleitar-se de não se. Apesar de eu não ter tido qualquer tipo de envolvimento ou culpa, eu juro que a compreendo... Ser sem parar deve ser muito cansativo.

Agora, eu mesmo cansei foi de olhar pro meu ventilador girar. Vou pôr minha venda e virar de lado pra ver se durmo.

Um comentário:

  1. Forte, cru... vou voltar pra ler de novo!
    Vc está se superando! A descrição é muito detalhada, consigo ver cada cena!
    Admiro a tua criatividade e a capacidade de observação da espécie humana! Bj

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