A NOSTALGIA DO CEMITÉRIO



Antes de iniciar a leitura deste conto:

1. Tampe o nariz, pois caminharemos por lugares fétidos;
2. Escolha o nome para a personagem a ser apresentada a seguir.

Ela estava sonhando, morta, ou tendo um pesadelo, estando viva? Não sei. Só sei que o pior aconteceu: ela acordou.

Sem sentir parte alguma de seu corpo ela foi recobrando a consciência. Mas só abriu os olhos depois de alguns minutos e tinha a sensação de estar flutuando no meio do oceano, sem ser capaz de mover-se. Se ela continuasse inerte, ela permaneceria flutuando sobre aquela superfície líquida. Se ela realizasse algum movimento brusco, as águas geladas a engoliriam, e seu cabelo branco perolado seria tragado pelo sal infinito.

Quando, finalmente, teve forças pra levantar-se, ela olhou tudo à sua volta: tratava-se de um lugar que de tão vazio chegava a ser perturbador. Ao redor, só havia cacos. Muitos, muitos cacos. Milhões. E acima de si só havia uma neve neblina intermitente. Ela decidiu andar, mesmo estando descalça - e nua.

A cada passo que dava, um caco perfurava a sola de seus pés e logo após acontecia o mais temível ao se machucar: o escorrer do sangue. A dor de estar sendo invadida e atacada sem ter feito nada além de ter acordado e resolvido desbravar aquele mar de vidro. Mas aos poucos ela foi se acostumando e seus passos ficavam cada vez mais leves. Sua adrenalina se encarregou de anestesiá-la momentaneamente e ela continuou a percorrer aquele caminho que não era caminho pois não havia nenhuma demarcação no chão. Era uma sina: um caminho ao qual somos obrigados a seguir, mesmo quando não se tem uma direção.

E depois  de muito andar sobre cacos, ela começou a vislumbrar tapetes gigantescos de algodão que davam em um vale cheio de estátuas empoeiradas, tumbas entreabertas e caixões a serem enterrados. Ela não queria continuar, mas pisar em algodão seria um alívio e alguma coisa naquele cemitério a atraía: uma estranha nostalgia sussurrava em seu ouvido e a convidava a se aproximar. Ela era obediente.

Após o contato com o felpudo algodão o sangramento de suas feridas fora estancado, mas a dor pior ainda estava por vir. A assepsia das feridas sempre dói mais. Mas é uma dor boa. A dor é boa. E quando, finalmente, chegou ao cemitério, percebeu que o chão era um piso negro coberto por um líquido que ela não sabia se era álcool ou formol. Mas aquilo a queimava, a ponto de quase desmaiar, porém a curiosidade ainda a mantinha lúcida. Muito lúcida.

Quando tudo ficou insuportável, ela subiu em um caixão e olhou para os seus pés a fim de ver como estavam. As lágrimas caíram por alguns minutos e os seus gritos ecoavam longínquos, mas não parecia incomodar o quê ou quem estava no interior daquelas tumbas e caixões.

A dor ia se assentando, mesmo que ainda irrequieta, e sua curiosidade fez ela abrir a portinhola que tinha na extremidade superior do caixão. Com medo de ver o que havia ali embaixo, ela fechou os olhos enquanto puxou a pequena maçaneta com toda a sua força. E quando abriu os olhos, deu de cara com a morte. 

O que havia dentro do caixão saltou, lançando-a de volta àquele líquido maldito e agora seus gritos eram muito mais altos e agudos pois o desespero havia sido adicionado às suas dores. Outros caixões, tumbas e mausóleos começaram a se abrir espontaneamente e de lá de dentro saíam todas as coisas que ela havia matado. Eles voltaram para se vingar.

Ela gritava inutilmente por socorro, mas não conseguia mais ouvir sua própria voz. Ela estava em pânico diante daquela ressurreição dantesca de instantes que já havia vivido, mas que agora, voltavam contra si. Todos os "nãos" e "sims" que ela disse, voltaram sob o corpo moribundo de pessoas que a feriram, mas que agora eram zumbis que gritavam e a molestavam esfregando os fatos ressuscitados do passado em sua cara pálida e desfalecente. 

Ela precisava reagir, e então, começou a dizer tudo aquilo que precisava dizer quando tudo aconteceu, mas que por covardia ou por preguiça de ser a dona da razão havia mantido sob o véu de seus pensamentos. E ela tinha tanta coisa guardada, que havia palavras guardadas até mesmo em seu esôfago, estômago, fígado e intestinos... 

E quando ela finalmente verbalizou todas as suas vísceras, ela acordou. Sim, ela estava viva e seus pés, intactos e hidratados. "Que sonho de merda" - pensou, após sentir o mau hálito de seu primeiro suspiro daquele dia nublado. Tudo o que ela enterrou, na verdade, nunca morrera. Suas lembranças eram o bálsamo que conservava o passado e o mantinha vivo dentro de sua mente, ainda que restritos apenas aos sonhos. E ela continuou sendo covarde durante o resto dos outros dias, mesmo ciente de que aqueles vermes ainda habitavam o seu porta-jóias.



2 comentários:

  1. uhhh, que bom que era um pesadelo, mas que pena que ela não aprendeu com ele...

    Bjsssssssssss e até o próximo (estou esperando! fazia tempo que eu não esperava nada na internet!)

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  2. Vinicius, que conto maravilhoso!! As doses de surrealismo e abstracionismo que pairam sobre o texto instigaram-me muito. Você está evoluindo muito como escritor! Vá em frente

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